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sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Desconstruindo grades:

Desconstruindo grades:
Um caso do CERSAM Venda Nova


            O caso Beatriz chega ao CERSAM Venda Nova, através da Equipe de Saúde da Família. Esta nos solicita atendimento para alguém que estava sendo mantida em cárcere privado, dentro de sua própria casa. A mãe da usuária se recusava a fazer qualquer contato ou a deixar que sua filha saísse de casa. O pai foi chamado e compareceu ao CERSAM, demonstrando preocupação em conseguir atendimento para sua esposa e afirmava não querer que outras pessoas fossem até sua casa, alegando preferir privacidade para sua família. Nossa primeira aposta foi convidá-lo a confiar em nosso trabalho, estratégia que abriu a possibilidade de falar sobre sua filha, de contar-nos a história de uma jovem de 45 anos que há quinze anos encontrava-se em cárcere privado e sem tratamento.
            Um corte na biografia marca seu relato. Pouco há a dizer após os dezoito, dezenove anos. Ponto de interrupção de uma biografia que até esta data transcorreu dentro do esperado: Beatriz estudou no Colégio Santa Dorotéia, cursando até o 1º ano do segundo grau, passeava com os pais pela região da Savassi, onde também fazia compras. O relato é marcado pelo orgulho. Fotos antigas da família revelam uma Beatriz esbelta, bonita e alegre.
            O início das mudanças de comportamento foram percebidas pelo pai na época do colégio: mostrava-se inquieta, agitada em sala de aula e mudou duas vezes de escola. Um certo dia, depois de um encontro com um rapaz, o pai foi chamado a buscá-la na Afonso Pena: ela estava estranha, não dizia coisa com coisa. Nunca mais foi a mesma. Dois eventos: o AVC sofrido pelo pai e a morte do irmão mais velho num acidente de carro, são lembrados como fatos que vieram agravar a situação.
            Com a permissão do pai, duas técnicas do CERSAM foram até sua casa fazer uma visita domiciliar. A mãe bastante debilitada pela diabetes, aceita recebê-las e falar-lhes de Beatriz. Conta sobre as várias tentativas de tratamento, incluindo internações psiquiátricas nas quais foi submetida a sessões de ECT (eletrochoque) e enfatiza que só serviram para piorar o seu quadro. Desde então, vinha recusando atendimento para a filha, não permitindo sequer que fizesse uso de medicação. Há muitos anos Beatriz não saía mais de casa, vivia totalmente nua. Estava há oito meses sem tomar banho e sem cortar as unhas. Bacias de água eram colocadas no quarto na tentativa de que ela as usasse para fazer suas necessidades. Não dormia em sua própria cama, apenas no chão. Não aceitava sentar-se à mesa para alimentar-se, comia sentada no chão, dispensando os talheres. Desde há muito tempo deixou de dirigir a palavra a alguém. Às vezes a ouviam falando sozinha. A certa altura da conversa, a mãe pergunta o nome da técnica de referência e num esforço para enxergar seu rosto, se surpreende, e muito emocionada, diz que aquele era o dia de Nossa Senhora do Carmo, mesmo nome da técnica, fato que ela interpreta como um sinal. Dirige-se então à filha, recomendando-lhe que aceite a ajuda do CERSAM. Três dias depois, falece.
            No quarto, além da cama, havia um guarda-roupas vazio contornado por uma corrente de ferro. Uma grade de ferro na porta servia de porta dupla: ao abrir o quarto fechava o banheiro. As janelas eram vedadas até a metade por tábuas. O guarda-roupas contornado pela corrente de ferro, servia de anteparo entre ela e a janela e as tábuas protegiam sua nudez do olhar vindo de fora. Na cozinha havia também uma corrente de ferro em volta da geladeira. Uma imagem impressionante para quem olhava. Sentia-se um odor desagradável. Uma cena dantesca. As visitas só podiam ser feitas à tarde e previamente combinadas, depois que o pai tivesse terminado os afazeres domésticos. Ele limpava, lavava, cozinhava e cuidava das duas mulheres.
            Uma medicação foi prescrita e como a recusava, passou a ser dada pelo pai, junto com um doce de côco que o mesmo preparava. Ela comia o doce e cuspia o comprimido. O pai passou a então triturar o remédio, misturando-o ao doce que era enfeitado com um confete colorido de chocolate, a fim de desviar sua atenção. Beatriz cuspia o confete e ingeria o doce com a medicação.
            Nessa época, o pai colocou uma mesinha no quarto onde deixava sua comida, que antes era servida no chão e notou que ela sentou-se na cama, ato que há muito tempo não fazia. Aos poucos Beatriz foi melhorando sua posição, não permanecendo tanto encolhida, esticando mais as pernas. Seu pai achou que ela estava “mais esperta (...), com mais brilho nos olhos” e também mais ríspida e intolerante com ele. Uma terapeuta ocupacional do CERSAM passou a acompanhar o caso em conjunto com as referências e a fonoaudióloga da rede básica foi também incluída no projeto de tratamento. A busca do consentimento e participação do sujeito em seu tratamento, levando-a a fazer e significar suas escolhas, orientou e orienta seu percurso junto a nós.
            O ambiente da casa encontra-se bastante melhorado. As grades forma retiradas da porta do quarto e nestas foram colocadas cortinas. Vasos de flores adornam o interior da casa. Beatriz passou a se interessar em olhar a rua e mostra-se atenta aos ruídos de pessoas e passarinhos. Quase seis meses após iniciar o tratamento vai ao CERSAM pela primeira vez, levada pelo pai. Passa a fazer hidroginástica numa academia próxima a sua casa, se senta à mesa para fazer as refeições, vai ao salão de beleza, ao shopping, ao zoológico e a muitos outros lugares. Supera assim uma interdição vivida durante muitos anos, ainda que, às vezes, circule nua pela casa.
            As grades nas janelas, símbolo emblemático do manicômio, durante quinze anos isolaram no intento de proteger e foram naturalizadas por muitos: familiares, vizinhos, profissionais que ao longo destes anos, mantiveram a distância e aceitaram o inaceitável. Esta história pôde se escrever de outro modo a partir do encontro entre a ausência de Beatriz, como integrante daquela família e a rede de saúde, em especial, a equipe de saúde da família e o CERSAM, parceiros que chamaram para si a responsabilidade de cuidar para ajudar a viver, repudiando o que outros olhos haviam tratado como normal.
            Uma rede de cuidados foi tecida, articulada, visando quebrar as grades que excluíam e desconectavam o sujeito dos laços com a vida, com o outro e a cidade. Aprendemos com este caso que um projeto terapêutico não é definido quando se faz o acolhimento, ele não é pré-estabelecido. Constrói-se, assim como o caso clínico, no decurso de um tratamento. E é só no depois que podemos vislumbrá-lo. Trata-se de uma construção singular que respeita as particularidades de cada caso, de cada sujeito, de cada região, de cada equipe, de cada família, que devem encontrar espaço e incentivo para participar dessa construção. Devem, portanto, ser incluídos para poderem, em casos como estes, voltar a fazer parte do coletivo humano, resgatando a dignidade enquanto constróem um estilo, um modo de viver no qual os contornos ou pontos de sustentação e ancoragem sejam dados pela presença e cuidado ofertados pelo outro e nunca por grades.

Maria do Carmo Regiane
Psicóloga do CERSAM Venda Nova
            

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